IPTU e alienação fiduciária: Por que a tese fixada no Tema 1158 do STJ importa mais do que parece
Em 12/3/25, o STJ fixou a seguinte tese em relação ao Tema 1158: "O credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse no imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 34 do CTN".
Em linguagem menos técnica: os bancos, enquanto credores fiduciários, não podem ser responsabilizados pelo pagamento do IPTU de imóveis financiados antes de serem imitidos na posse. A tese foi celebrada por uns, lamentada por outros e, talvez, ignorada por quase todos fora do meio jurídico. Afinal, mais uma tese tributária, mais uma discussão sobre sujeição passiva, mais uma disputa entre bancos e municípios.
Mas este artigo não trata apenas da tese referente ao Tema 1158/STJ. Trata do que (quase) ninguém viu: o que se discutia ali era, na verdade, o futuro do financiamento imobiliário no país.
O mercado de crédito imobiliário é um dos pilares da economia brasileira. Em 2024, foram financiadas cerca de 1,2 milhão de unidades habitacionais, com investimentos que ultrapassaram os R$ 312 bilhões. Cerca de 95% dessas operações ocorreram sob o regime da alienação fiduciária. Isso significa que, para cada 100 contratos de financiamento habitacional, 95 utilizam esse instrumento jurídico como garantia. Um instrumento que, além de dar segurança jurídica, permite taxas de juros mais acessíveis. Um instrumento que, simplesmente, viabiliza o acesso à casa própria.
A média de prazo desses contratos é de 33 anos. Mas a duração média efetiva das carteiras é de 13 anos. O que isso significa? Que, embora o financiamento seja contratado a longo prazo, as famílias, na prática, antecipam os pagamentos. Isso também significa que qualquer desequilíbrio econômico introduzido no contrato - como a imposição do IPTU ao banco financiador - afetará não apenas os próximos meses, mas operações com mais de uma década de duração.
Caso a decisão do STJ tivesse sido outra, ao menos cinco efeitos ocorreriam. Nenhum deles favorável à sociedade.
O primeiro: Haveria um aumento da taxa de juros dos financiamentos entre 2 e 2,5 pontos percentuais. De acordo com parecer técnico de Bernard Appy e Bráulio Borges, apresentado pela Febraban, que atuou na condição de amicus curiae, o custo tributário do IPTU, não absorvido na precificação original da operação, precisaria ser repassado aos tomadores. Resultado: financiamentos mais caros, maior risco de inadimplência, mais seletividade na concessão do crédito.
O segundo impacto seria devastador: Uma retração de 2,3% no PIB nacional. Projetado para 2025, isso representa uma perda anual de cerca de R$ 295 bilhões - um golpe profundo, com reflexos duradouros na economia brasileira.
O terceiro: A arrecadação da União e dos Estados cairia, em média, R$ 75 bilhões por ano. A dos municípios, paradoxalmente, teria uma perda estimada em R$ 6 bilhões anuais. Isso, apesar de serem os mesmos municípios que desejavam cobrar o IPTU das instituições financeiras. A tentativa de aumentar a arrecadação do IPTU, em suma, teria como resultado um rombo muito maior que o benefício pretendido.
O quarto: O setor da construção civil, que representa parcela significativa do PIB, sofreria retração sensível. É um setor intensivo em mão de obra, com forte efeito multiplicador. Qualquer redução no volume de financiamento atinge de forma direta esse setor, com reflexos em toda a cadeia produtiva.
O quinto - e também gravíssimo: Famílias de baixa renda seriam diretamente afetadas. Como a parcela mensal do financiamento imobiliário não pode ultrapassar 30% da renda familiar, o aumento dos encargos reduziria o valor financiável e, muitas vezes, inviabilizaria a concessão do crédito. O acesso à casa própria seria adiado. Ou cancelado.
Hoje, o déficit habitacional no Brasil gira em torno de 6 milhões de moradias. A decisão do Tema 1158/STJ evitou que esse número aumentasse.
Pode parecer que os bancos venceram e os municípios perderam. Mas isso é um equívoco. É um erro de perspectiva. Uma leitura apressada. O mesmo tipo de leitura que foi feita quando se discutia a incidência de ISS sobre as operações de leasing. Durante anos, discutiu-se se o imposto era devido no município da sede da empresa arrendadora, no do domicílio do arrendatário, ou no local da retirada do bem. Enquanto o STJ não pacificou o entendimento, o produto leasing praticamente desapareceu. Três possíveis sujeitos ativos exigindo o mesmo imposto sobre o mesmo fato gerador. Nenhuma segurança jurídica. E um produto financeiro que poderia ser menos custoso do que o crédito direto ao consumidor (CDC) simplesmente desapareceu do mercado.
Quem perdeu com o desaparecimento do leasing? Os bancos? Os municípios? Na verdade, quem perdeu foi a sociedade. Que ficou com uma opção a menos. Um produto a menos. Um acesso a menos.
Por isso, quando os tribunais superiores julgam questões tributárias que envolvem produtos financeiros amplamente utilizados, não estão apenas decidindo quem paga ou quem arrecada. Estão, na prática, influenciando quem consome, quem acessa o crédito, quem financia o próprio futuro. Estão decidindo o que chega - ou deixa de chegar - à sociedade.
O julgamento do Tema 1158/STJ revelou como decisões aparentemente técnicas podem repercutir profundamente na vida das pessoas. O STJ fez mais do que interpretar a lei: protegeu a coerência do sistema, a estabilidade do crédito e o acesso à moradia. A decisão não foi boa apenas para os bancos. Foi correta, necessária - e boa para o país
Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/questao-de-direito/430280/iptu-e-alienacao-fiduciaria-por-que-o-tema-1158-do-stj-e-importante